Se você usou a internet essa semana, provavelmente viu o triste caso do cachorro Joca, um Golden Retriever de cinco anos que morreu enquanto era transportado pela Gol Linhas Aéreas. Separando toda a dor e revolta, quero focar aqui nas perguntas sem respostas, na postura da companhia aérea, nas ações que resultaram em um prejuízo incalculável de imagem, e sobre como essa crise foi escolhida pela própria empresa.
Joca era o cachorro do João Fantazzini, tutor que contratou a Gollog, “serviço inteligente de cargas e encomendas da Gol”, e que é usado também para transportar pets. Vamos aos fatos públicos até o momento e como a empresa agiu diante deles:
Em entrevista ao Mais Você, da Globo, João contou que confiou no que a empresa vendeu e prometeu a ele: que seu cachorro teria suporte, acompanhamento e segurança, inclusive com veterinário. Mas não foi isso que aconteceu. Joca foi para o destino errado após uma troca de etiquetas. Uma falha humana e, infelizmente, comum. Mas o que se seguiu foram escolhas da Gol. O desfecho seria outro se, após o erro inicial, a Gol tivesse tratado Joca como uma vida e não como um objeto.
A companhia aérea exige uma série de coisas para transportar pets, entre elas um laudo de saúde. Joca tinha laudo da veterinária para voar por 2h30 - tempo suficiente para o trajeto São Paulo-Mato Grosso -, mas foi para Fortaleza, trecho de aproximadamente 3h30, e depois voltou para São Paulo, totalizando um tempo de voo bem acima do autorizado. Ele não poderia voar de novo sem nova avaliação. Por que a Gol ignorou o laudo?
Segundo relato do tutor, ao notar o erro dos destinos, a Gol entrou em contato e disse para ele, que já estava em Mato Grosso, voltar para São Paulo porque o Joca também voltaria. Não deram sequer a chance dele ir até o animal e de lá voltarem juntos. Por que a Gol não abriu uma exceção como reparação pelo erro?
Quando uma empresa erra com você, é comum que ela ofereça um mimo, um desconto ou uma nova experiência. Por que a Gol não tratou a situação de forma única como o caso exigia? Mesmo após todas as tragédias com pets sendo cargas em voos, a Gol não aprendeu nada? Seria mais caro uma passagem do Mato Grosso para Fortaleza? E como esse voo demora mais, a Gol teria que CUIDAR do cachorro até o tutor chegar? Se a empresa disse que cuida e garante a segurança do animal, onde estava o veterinário que a companhia diz ter? E se não tinha um profissional à disposição, por que não contratou um em Fortaleza para verificar a saúde dele e mantê-lo seguro à espera de seu tutor?
João conta ainda que, até dar o horário do voo de Fortaleza para São Paulo, Joca ficou dentro da caixa na pista, exposto ao sol por mais de uma hora, recebendo apenas água que jogavam nele, e a Gol mandava fotos para mostrar que Joca estava sendo cuidado. Mas que cuidado é esse? Joca já estava estressado e cansado após mais de três horas no porão de uma aeronave, longe de tudo que lhe era familiar e sem entender nada. A sensação térmica na capital cearense passava de 30ºC. Por que deixaram ele na pista? Quantas pessoas passaram por ele? Ninguém pensou em tirar o animal da caixa, mantê-lo em local seguro até ser reavaliado pelo veterinário prometido na venda do serviço?
Ainda de acordo com o tutor, quando ele e Joca chegaram em São Paulo, também não havia veterinário da Gol. O profissional foi chamado após a morte do animal, chegou três horas depois e afirmou não trabalhar para a companhia.
O ponto aqui é que a Gol teve diversas oportunidades de proteger a vida do Joca ou a imagem da companhia, mas jogou todas as chances fora. Ou quase. A Gol demonstrou, sim, preocupação com a própria imagem, mas apenas quando deu a pior notícia da vida do João pra ele. Segundo o tutor, a funcionária que lhe contou sobre a morte do Joca teve o cuidado de afastar ele da área em que outros clientes estavam para embarcar seus animais. Ou melhor, malas.
As informações públicas até o momento indicam que infelizmente a vida do Joca foi perdida em função das escolhas da empresa: não respeitar o laudo; manter o Joca dentro da caixa e na pista exposto ao sol intenso; mandar o tutor e o Joca para São Paulo ao invés de reavaliar a saúde do cachorro e mantê-lo em segurança em Fortaleza; não ter acompanhamento de veterinário em nenhuma etapa do processo como prometido aos clientes; e chamar um profissional apenas após a tragédia.
Qualquer atitude diferente possivelmente teria salvo a vida do Joca e representaria centavos perto do prejuízo incalculável, tanto da morte do animal quanto da crise crescente de imagem da Gol.
Quem trabalha com comunicação sabe o quanto o espaço na imprensa é desejado pelas empresas, especialmente em TV, com minutos valiosíssimos. Conseguir a exposição gratuita de uma marca é um dos principais objetivos de qualquer PR, mas, claro, que de forma estratégica e positiva.
A Gol foi manchete nos espaços mais desejados do país, mas da pior forma possível. Desde que o caso veio à público, a condução desastrosa da empresa foi notícia em praticamente todas as editorias.
A companhia aérea estampou manchetes em dezenas de veículos, inclusive em outros idiomas. Na TV, a Gol teve exposição negativa nas maiores emissoras, em diferentes programas de cada uma.
Sei que muitas empresas gostam do mote “falem bem ou mal, mas falem de mim”, mas acho que não se aplica ao caso. A empresa teve queda de 8% em suas ações e, como tudo ficará na internet para sempre, essa crise de imagem terá um preço incauculável à companhia, muito maior do que a indenização ao tutor do Joca que aliás, espero, seja a maior da história do Judiciário para casos assim.
Do ponto de vista da aviação, o legado disso tudo precisa ser uma revisão urgente do transporte de pets. Animal não é bagagem e as empresas já deram diversos indicativos trágicos de que não têm condições de manter a segurança deles nos trajetos, nem antes do voo, nem durante nos seus porões, sequer após o desembarque.
Do ponto de vista de comunicação, a maior lição desse caso é que todas as empresas estão sujeitas a erros, mas a forma de lidar com eles é opcional, especialmente se envolvem vidas. Trocar o voo foi gravíssimo, claro, porém possivelmente algo imperceptível no momento. Mas tudo que aconteceu depois foram escolhas da Gol, motivadas por falta de protocolos sérios, de empatia e da incapacidade de aprender com erros anteriores.
Para citar apenas um caso, em 2022 a Gol perdeu a cachorra Pandora no aeroporto de Guarulhos (SP). Ao invés de permitir que o tutor procurasse sua companheira de estimação, a Gol dificultou os esforços de buscas, se eximiu da responsabilidade, ignorou a opinião pública e prolongou o sofrimento do rapaz — arrastando a empresa em uma crise de imagem — por 45 dias. Não era mais fácil ajudar o tutor desde o dia 1? O resultado seria o inverso e exemplarmente positivo para todos.
Outras perdas e mortes aconteceram em diferentes companhias aéreas e nem assim a Gol aprendeu o valor de uma vida. Talvez agora entenda que não tem preço.
Como novo desdobramento do caso, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) anunciou que vai “ouvir a sociedade para debater as regras do transporte aéreo de animais”. Uma consulta pública foi iniciada ontem (29) e ficará aberta para contribuições por 15 dias. Na quinta (2), a partir das 14h, haverá uma sessão presencial, em Brasília (DF), com transmissão ao vivo pelo canal de YouTube da Anac.
Espero que a morte do Joca não seja em vão.